Se você cresceu nos anos 90, você se lembra que não tínhamos ainda as diversas plataformas de streaming, certo? Nossas opções para assistir a algum filme eram: esperar chegar nos cinemas, alugar fitas VHS – sim, antes mesmo do DVD a opção era essa – ou assistir na televisão, como na Tela Quente ou Sessão da tarde, que reprisaram exaustivamente diversos filmes, como os clássicos de Tim Burton Edward Mãos de Tesoura, Batman – O retorno e Os fantasmas se divertem.
Recentemente, foi lançada a série Wandinha, em que Burton é produtor executivo e dirige alguns episódios. A série já figura no Top das mais vistas[1] e trouxe à tona (mais uma vez) a ausência de personagens negras nos trabalhos de Burton.
Retrospectiva
Ao fazermos uma retrospectiva de seus filmes – cerca de 30 – que tem como assinatura o gótico, o fantástico, podemos sem muito esforço perceber que seu mundo contempla personagens brancas. De tão escassa a presença, podemos contar quantos atores e atrizes negros foram escalados para os seus filmes.
Em Batman, de 1989, projeto que se arrastou na Warner durante dez anos[2], o ator Billy Dee Williams interpretou Harvey Dent, que não chega a virar o Duas Caras e encerra a sua participação no primeiro filme da franquia. Dent chegou a afirmar que só tinha aceitado o papel por saber que a personagem voltaria, desta vez como Duas Caras, fato previsto em cláusula contratual que, no entanto, não aconteceu.
Em 1993, na animação O estranho mundo de Jack, o ator Ken Page interpreta Oogie Boogey (que, no inglês, pode ser traduzido como uma ofensa racial), que come insetos, faz apostas e canta um número de blues inspirado em Cab Calloway.
Na época da animação citada, a roteirista Caroline Thompson conversou com Burton sobre sua desaprovação quanto à personagem e ele teria dito que ela estava sendo “sensível demais”[3].
Em Planeta dos Macacos[4], filme de ficção científica de 2001, Michael Clarke Duncan dá vida à personagem do Coronel Attar, que sequer tem grande destaque na trama, protagonizada por Mark Wahlberg, Helena Bonham Carter e Tim Roth.
Os estereótipos raciais estão presentes, conforme salienta o crítico Romney: os inteligentes e sofisticados macacos foram interpretados por atores e atrizes brancos, como Bonham Carter, enquanto o inescrupuloso Atar foi interpretado pelo saudoso Duncan[5].
Apenas em 2016, com o filme O lar das crianças peculiares, presenciamos um protagonismo negro nas obras de Burton com a personagem de Samuel L. Jackson e, ainda assim, como vilão. Nesta época, as críticas começaram e, com a chegada da série Wandinha, voltaram com tudo.
A falsa simetria com o Blaxploitation
Ao ser indagado em uma entrevista feita por Rachel Simon à época do lançamento do filme “O orfanato de crianças peculiares”, Burton disse que as pessoas estavam começando a falar mais sobre diversidade.
Como justificativa da ausência de pessoas negras em seus filmes, disse[6]:
Ou as coisas clamam por isso ou não. Eu me lembro de quando assistia “The Brady Bunch” e eles começaram a ficar politicamente corretos. Tá, ok, vamos ter uma criança asiática e uma negra. Eu ficava mais ofendido com isso do que… Eu cresci assistindo a filmes Blaxploitation e era ótimo. Eu não ficava ‘ok, ali deveria ter mais personagens brancos’.
Com o lamentável comentário, Burton tenta dizer que não vê problema algum nesta ausência/número ínfimo de pessoas negras em seus filmes e traz ainda uma falsa simetria, ao falar dos filmes Blaxploitation.
O movimento do Blaxploitation surgiu como resposta ao racismo na década de 70, inspirados no movimento Black Power. Apesar de ter críticas a respeito de alguns filmes, que reforçavam estereótipos, fato é que atrizes e atores negros eram protagonistas e as histórias traziam críticas contundentes, além de retirar diversos atores e atrizes negras do ostracismo.
Ora, se o intuito destes filmes era colocar em evidência atores e atrizes negras, alçando-os ao patamar de protagonistas, é o cúmulo do absurdo fazer comparações como a de Burton, no estilo: “ah, as pessoas falam da ausência de pessoas negras nos meus filmes, mas não mencionam a ausência de pessoas brancas nestes filmes”.
Além desta falsa simetria feita por Burton, ele ainda fala em politicamente correto como algo negativo. Podemos constatar este comportamento quando pessoas tentam justificar o injustificável: o racismo. Diversos casos midiáticos sobre racismo recreativo desaguam na mesma resposta de alguns ditos comediantes brasileiros, “ah, tudo agora é politicamente correto, isso não passa de mimimi”.
Caro Burton, não tem como justificar a ausência de atores e atrizes negras como protagonistas, em papeis de destaque, que não sejam vilãs ou estereótipos em seus filmes.
Em 2022, ainda é preciso falar sobre a importância da representatividade nas telonas. Ainda é preciso falar sobre ausência de personagens negros nas tramas. Ainda é preciso falar e lutar pelo óbvio.
Notas de rodapé
[1] Disponível em: https://www.omelete.com.br/series-tv/wandinha-audiencia-3-serie-mais-vista-netflix Acesso em 08 dez. 2022.
[2] WOODS, Paul A. O estranho mundo de Tim Burton. São Paulo: Leya, 2002. p. 78.
[3] Disponível em: https://www.insider.com/nightmare-before-christmas-oogie-boogie-racist-2020-12 . Acesso em 08 dez. 2022.
[4] O livro de Pierre Boulle já havia sido adaptado anteriormente, em 1968.
[5] Crítica de Jonathan Romney, presente no livro mencionado na nota de rodapé n. 2, p. 271.
[6] Disponível em: https://www.bustle.com/articles/186641-tim-burton-explains-why-miss-peregrines-home-for-peculiar-children-features-a-predominantly-white-cast. Acesso em 08 dez. 2022.