Em 2019, em sua vinda ao Brasil, Angela Davis disse: “eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”. Acredito que esta frase despertou em muitas pessoas a busca pelos textos de Lélia Gonzalez, ainda é pouco conhecida e, consequentemente, linda, no Brasil.
Posso dizer por mim mesma. Quando iniciei meus estudos sobre questões raciais e de gênero, li toda a obra de Davis antes de ter em minhas mãos algum texto de Gonzalez, que nasceu em Belo Horizonte em 1935 e que, em 1942, se mudou com a família para o Rio de Janeiro, onde morou até o fim dos dias, em 1994. Apesar de morarmos na mesma cidade e, portanto, estarmos geograficamente perto, nas minhas leituras eu “viajei” primeiro aos Estados Unidos de Davis. Quando comecei a ter contato com a produção de intelectuais brasileiras como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, compreendi muito mais a fundo as questões raciais brasileiras, pautadas no mito da democracia racial.
Gonzalez, que era doutora em antropologia política e mestre em comunicação social, graduada em história e filosofia, escrevia sem qualquer tipo de academicismo. É por isso que seus textos são absorvidos com tranquilidade por quem quer que os leia. Eu admiro muito quem, apesar de todos os numerosos títulos, consegue escrever desta forma, atingindo a quem é da sua área e também pessoas leigas. A intelectual foi professora em diversos estabelecimentos e dava verdadeiras aulas não só para suas turmas, como também a todas as pessoas que liam o que escrevia. Exemplo disso é o texto Cumé que a gente fica?[1], em que, trabalhando história e psicanálise de forma fluida, fala sobre estereótipos racistas e o mito da democracia racial.
Lélia Gonzalez lutava por um feminismo afro-latino-americano, colocando o dedo na ferida ao denunciar a exclusão de mulheres indígenas e negras dentro do movimento. Apenas as verdadeiras camaradas brancas – que chamava de “mulheres-exceções” – considerava suas irmãs. Sobre o tema, o texto escrito em 1988 ainda permanece atual: há um racismo por omissão, pautado em uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista, que infantiliza mulheres negras e indígenas e suprime a sua humanidade[2].
Não temos ainda a Lei 10.639/2003 – que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares – aplicada na prática. Como consequência, seguimos contando uma história do Brasil com sérios apagamentos e distorções. Até quando ficaremos sem ensinar “a história que a História não conta”? O que dizer de palavras que usamos diariamente e que sequer sabemos que tem origem africana, como dengo, uma das mais lindas – tanto na sonoridade quanto no significado?
Por que há o deboche quando ouvimos uma pessoa dizer “framengo” e não flamengo? O motivo é simples: não se conhece o pretuguês, termo cunhado por Gonzalez para se referir à marca de africanização do português falado no Brasil. A intelectual assim explica[3]:
O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo e também a ausência de certas consoantes (como o L ou o R, por exemplo), apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (…) Desnecessário dizer que tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo ‘cultura popular’, ‘folclore nacional’.
A dominação e opressão da população negra aconteceu – e ainda acontece – das mais diversas formas: através da demonização das religiões de matriz africana, da criminalização da capoeira e das “piadas” – fruto do racismo recreativo – acerca da aparência física.
A linguagem é mais uma maneira de dominação. Homens e mulheres escravizados, vindos de diversas regiões de África, foram forçados a descartar o seu idioma e a aprender o idioma do colonizador. Houve uma tentativa de apagamento linguístico.
O ataque e ridicularização de quem troca o L pelo R, por exemplo, ao argumento de que é ignorante e não sabe falar português direito demonstra que, aquele que ataca desconhece toda a contribuição africana para a construção de nossa língua. Afinal, como a própria pensadora nos faz refletir, quem é o ignorante?[4]
Ignoram que a presença desse R no lugar de L nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. (…) Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitos verbais, que condensa ‘você’ em ‘cê’, o ‘está’ em ‘tá’ e por aí afora. Não sacam que estão falando pretuguês.
Pretuguês é, portanto, resistência. Viva Lélia Gonzalez!
Notas de Rodapé
[1] Disponível em: LIMA, Marcia; RIOS, Flavia (org.) Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p.75.
[2] Idem. p. 141
[3] P. 128.
[4] P. 90