Apesar de reconhecer o caráter nitidamente jocoso da expressão, nunca me desceu bem a identificação do dicionário como o “pai dos burros”, já que, sabidamente, a estupidez não tem por hábito frequentá-lo; ao contrário, sobrevive de ignorá-lo. Tinha inteira razão Friedrich Schiller (1759-1805): “com a burrice os próprios deuses lutam em vão”[i].
Seja como for, dicionários, enciclopédias e outras obras de referência acompanham o estudante por toda a vida, pois nos facultam o ingresso em terrenos ainda incertos ou desconhecidos, fornecendo uma trilha razoavelmente segura, afigurando-se como uma espécie de mapa para o conhecimento. Nesse sentido, são verdadeiros antídotos contra a burrice e a estupidez. Evidentemente são muitas as opções, e cada um decidirá com base em seus respectivos temas de interesse. Destaco algumas que me parecem excelentes, todas disponíveis em língua portuguesa – algumas são bem conhecidas; outras, nem tanto.
Aos mais ávidos de questões filosóficas, o dicionário de Nicola Abbagnano[ii](1901-1990), atualmente editado pela Martins Fontes, é “figurinha carimbada”, ao que dispensa maiores apresentações. Um pouco menos conhecido é o de José Ferrater Mora[iii](1912-1991), que aparece em quatro alentados volumes, cuidadosamente editados pela Edições Loyola – é uma opção mais onerosa, mas que se justifica logo à primeira folheada. Em um formato bem mais compacto, há um exemplar impressionante, em razão dos verbetes especialíssimos que expõe: o Dicionário de Filosofia[iv] do saudoso professor Mario Bunge (1919-2020).
Naquilo que respeita à teoria social, há muito o que extrair do Dicionário do Pensamento Marxista[v], de Tom Bottomore (1929-1992), que, aliás, também organizou, em parceria com William Outhwaite (1949-), outro excelente dicionário, inteiramente dedicado ao século XX[vi] – ambos estão editados pela Zahar. Quanto a temas de teoria política, ainda hoje me vejo às voltas com o Dicionário de Política[vii] de Norberto Bobbio (1909-2004): dois pequenos volumes, editados pela UNB em formato de bolso, que sobreviveram à prova do tempo.
Se o interesse for mais propriamente histórico, são infinitas as possibilidades. Ainda me impressiono com a História da Inteligência Brasileira[viii], de Wilson Martins (1921-2010), cujos sete tomos, a despeito de todas as críticas que possam merecer, são um repositório inexcedível da nossa cultura. Bem mais abrangente e notavelmente mais sofisticada é a História da América Latina[ix], organizada por Leslie Bethell (1937-) em dez volumes. Enfocando instituições e partidos, as histórias do poder legislativo[x] e dos partidos políticos brasileiros[xi], do professor Vamireh Chacon (1934-), conservam-se indispensáveis, e bem poderiam ser complementadas com o almanaque de dados eleitorais[xii] de Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019).
Para um tema absolutamente fascinante, recomendo a história do livro no Brasil[xiii], escrita por Laurence Hallewell (1929-) – até hoje, o principal trabalho nesse campo –, além de outros dois: A formação da leitura no Brasil[xiv] e Impresso no Brasil[xv]. Para compreender as ideias em curso em uma determinada época, é indispensável saber o que se publicava e o que se lia – e, por óbvio, o que estava ausente das prateleiras.
E para não dizerem que não falei de criminologia, o livro[xvi] do professor Anitua já nasceu um clássico, mas há outros tantos que mereceriam redobrada atenção: o esgotadíssimo tratado[xvii] de Albrecht, que implora por uma nova edição; o trabalho[xviii] formidável de Mannheim, ainda inédito em português brasileiro; além da mais recente publicação[xix] do professor Miguel Romão.
Em um texto dessa natureza, muitos outros autores poderiam ter sido listados, mas procurei me ater à regra do “menos é mais”. Conto para que não tenha cometido nenhum sacrilégio, mas, se porventura o fiz, confio no antipunitivismo do estimado leitor.
Notas de rodapé
[i] SCHILLER, Friedrich. The maid of Orleans. In: Complete works of Friedrich Schiller in eight volumes, vol. II. New York: P. F. Collier & Son, 1902, p. 199.
[ii] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6ª. Ed. Trad.: Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
[iii] MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia, 4 tomos. 2ª. Ed. Trad.: Maria Stela Gonçalves; et al. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
[iv] BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.
[v] BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. 2ª. Ed. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
[vi] OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (eds.). Dicionário do pensamento social do século XX. 2ª. Ed. Trad.: Eduardo Francisco Alves e Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
[vii] BOBBIO, Norberto; et al. (eds.). Dicionário de Política, 2 vols. 7ª. Ed. Trad.: Carmen C. Varrialle; et al. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
[viii] MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, 7 vols. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2010.
[ix] BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, 10 vols. São Paulo: Edusp, 2015.
[x] CHACON, Vamireh. História do legislativo brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2008.
[xi] CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. 2ª. Ed. Fortaleza; Rio de Janeiro: Edições UFC; Civilização Brasileira, 1981.
[xii] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Votos e partidos: almanaque de dados eleitorais: Brasil e outros países. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: FGV Editora: FAPERJ, 2002.
[xiii] HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 3ª. Ed. Trad.: Maria da Penha Villalobos; et al. São Paulo: Edusp, 2017.
[xiv] LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: UNESP, 2019.
[xv] BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Márcia (orgs.). Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: UNESP, 2010.
[xvi] ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad.: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008.
[xvii] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Trad.: Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessel Cardoso. Curitiba; Rio de Janeiro: ICPC: Lumen Juris, 2010.
[xviii] MANNHEIM, Hermann. Criminologia comparada, 2 vols. Trad.: J. F. Faria Costa e M. Costa Andrade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
[xix] ROMÃO, Miguel. Prisão e ciência penitenciária em Portugal. Lisboa: Almedina, 2015.