Tobias or not Tobias, ou: de como Zaffaroni caiu no canto das sereias

Tobias Barreto deslegitima a pena? Em que universo?

Entre os juristas especializados em matéria criminal, felizmente ainda há espíritos críticos, que não se deixam corromper pelas tentações imediatistas de assimilação dogmática, limitando-se a reproduzir a bibliografia europeia e estadunidense, em busca de uma explicação para o estado de coisas latino-americano. Afinal, uma coisa é reconhecer o caráter universalista do modo de produção capitalista, ele mesmo conformador de um sistema-mundo; outra, bem diferente, é negligenciar as particularidades e as singularidades do desenvolvimento histórico-cultural de cada continente e de cada nação.

Este esforço teórico-analítico é merecedor de todas as láureas, e é para gáudio nosso que autores brasileiros vêm merecendo a atenção de nossos companheiros latino-americanos, mas, em certos casos, novos enfoques acabam por render novas mistificações, como parece ter ocorrido com o tratamento dispensado aos escritos de Tobias Barreto (1839-1889).

Aos que possuem alguma familiaridade com a história do pensamento social brasileiro, ninguém se atreveria a negar que o patriarca da Escola do Recife é, sob múltiplos aspectos, digno dos mais altos elogios: pensador de indiscutível precocidade, de extraordinária aptidão como orador e docente, de personalidade magnética e carisma incomum, além de escrever em um estilo ácido e caçoísta que, seguramente, foi, ao seu tempo, um desconforto permanente para seus adversários intelectuais. Todos estes traços pessoais concorreram para que Tobias Barreto pudesse reunir em torno de si um grupo de jovens do mais variado quilate, que, de Silvio Romero (1851-1914) a Clóvis Beviláqua (1859-1944), marcaram a história de nossas letras – só que nem sempre nas melhores páginas…

Eugenio Raúl Zaffaroni (1940-), autor que prescinde de apresentações e qualificações curriculares, foi um dos que se encantaram com o pensamento de Tobias Barreto, destacando-lhe o brilhantismo teórico, a argúcia argumentativa e a genialidade (!), chegando mesmo a elencá-lo entre os remotos precursores da deslegitimação da pena[i]. Quem quer que tenha deitado os olhos em textos como Dias e noites (1881) reconhecerá que a prosa do autor sergipano é, apesar de alguma instabilidade estilística, encantadora – fato que deve ser encarado como o “soar do alerta”, de modo que o leitor redobre a cautela, até para não cair no proverbial canto das sereias.

No caso de Zaffaroni[ii], as sereias entoaram o seguinte verso: “Quem estiver em busca do fundamento jurídico da pena deve também buscar, se é que já não o encontrou, o fundamento jurídico da guerra”. A passagem impressiona à primeira vista, fazendo-nos crer que estaríamos diante de um crítico radical do poder punitivo. Ledo engano, grave equívoco. Pode-se dizer tudo dos escritos de Tobias Barreto, menos que eles deslegitimem a pena.

O trecho destacado pelo Mestre argentino é proveniente de um dos mais importantes textos jurídico-penais de Barreto: Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir[iii] (1881).

Como o próprio título já explicita, enfrentava-se a questão do fundamento do direito de punir. Aqui, a palavra-chave é “fundamento”, termo que aparece em duas acepções bastante distintas uma da outra, a saber: (a) origens ou causas primeiras[iv]; (b) princípio histórico racionalizador. O pioneiro dos germanistas brasileiros afirma que a busca das origens do direito de punir é uma veleidade intelectual, uma tolice completa, que deve ser posta de lado por qualquer intelectual que se leve a sério. Trata-se de exercício típico de uma certa metafísica retórica, que, em outro texto, ele identifica na obra de Francesco Carrara[v] (1805-1888).

Para Tobias Barreto, que vivia às voltas com o reacionaríssimo evolucionismo de Haeckel (1834-1919) e Spencer (1820-1903), dos quais extraiu uma leitura vulgar da obra de Darwin (1809-1882), o fundamento do direito de punir é um alicerce teórico, um princípio de cunho histórico, “intuitivo e líquido”; “uma necessidade imposta ao organismo social por força de seu próprio desenvolvimento”: o “direito de punir é um dos elementos formadores do conceito geral da sociedade”[vi]. Portanto, se examinássemos a história das sociedades humanas, verificaríamos um processo evolutivo que, desde as práticas sacrificiais mais primitivas, já comprovaria a inexorabilidade da pena[vii]:

Podem frases teoréticas encobrir a verdadeira feição da coisa, mas no fundo o que resta é o fato incontestável de que punir é sacrificar – sacrificar, em todo ou em parte, o indivíduo ao bem da comunhão social –, sacrifício mais ou menos cruel, conforme o grau de civilização deste ou daquele povo, nesta ou naquela época dada, mas sacrifício necessário, que, se por um lado não se acomoda à rigorosa medida jurídica, por outro lado também não pode ser abolido por efeito de um sentimentalismo pretendido humanitário, que não raras vezes quer ver extintas por amor da humanidade coisas sem as quais a humanidade não poderia talvez existir.

Está certo que cada sociedade haveria de determinar, no tempo e no espaço, as condutas que deveriam ser criminalizadas, porém, na opinião do autor, haveria crimes constitucionais (ou seja, constitutivos da sociabilidade humana): “crimes que se originaram, logo em princípio, da própria luta pela existência, e que são, como tais, inerentes à vida coletiva, ao contato dos homens em sociedade”[viii]. Evidentemente, ele não se propõe a encontrar um fundamento punitivo que se preste a todas as formas de criminalização, que, por sua própria natureza, seriam plurais. Todavia, para uma determinada espécie de delitos, “o direito que a sociedade exerce com a sua punição é justamente o direito de legítima defesa”. Frise-se: Tobias Barreto defende claramente que, para certos tipos de conduta, o fundamento racional da pena é a legítima defesa da sociedade – tese que, se proferida hoje, receberia, com razão, a pecha de reacionária. Portanto, não é de admirar que, para o autor, o conceito de pena seja político, pois entende que a pena é, ela mesma, mecanismo de manutenção da ordem social[ix]:

Todo sistema de forças vai atrás de um estado de equilíbrio; a sociedade é também um sistema de forças, e o estado de equilíbrio que ela procura é justamente um estado de direito, para cuja consecução ela vive em contínua guerra defensiva, empregando meios e manejando armas, que não são sempre forjadas segundo os rigorosos princípios humanitários, porém que devem ser sempre eficazes. Entre estas armas está a pena.

Ante o exposto, indago: em que universo se poderia dizer que Herr Barreto opera uma deslegitimação da pena? Considerando-se a vastidão de sua erudição e a exuberância de sua inteligência, não posso crer que Zaffaroni tenha lido o texto com o devido cuidado, uma vez que sua interpretação está completamente fora de lugar. O mais provável é que nosso hermano tenha passado os olhos em algumas páginas, ouvido o canto das sereias, e esquecido de se amarrar bem ao mastro. Em viagens futuras, que se observem os necessários deveres de cuidado…

Notas de rodapé

[i] ZAFFARONI, E. R. Derecho penal y criminología sociológica: integración y desintegración. Buenos Aires: Revista Derechos en Acción, año 5, nº 16, 2020.

[ii] ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5ª. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 222-223

[iii] In: BARRETO, Luiz Antonio (org.). Obras completas de Tobias Barreto: estudos de filosofia. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Aracaju: Editora Diário Oficial, 2013, pp. 228-241.

[iv] (Grifos meus) Ibid., pp. 228-230.

[v] “Os moços acadêmicos não se iludam: Carrara é um penalista metafísico da pior espécie”. In: BARRETO, Luiz Antonio (org.). Obras completas de Tobias Barreto: estudos de direito II. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Aracaju: Editora Diário Oficial, 2013, p. 80.

[vi] (Grifos meus) BARRETO, Luiz Antonio (org.). Obras completas de Tobias Barreto: estudos de filosofia. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Aracaju: Editora Diário Oficial, 2013, p. 231.

[vii] (Grifos meus) Ibid., p. 236.

[viii] (Grifos meus) Ibid., p. 238.

[ix] (Grifos meus) Ibid., p. 240.

Outros artigos

Continue seus estudos

Darcy Ribeiro
Introcrim
Caio Patricio de Almeida

Darcy Ribeiro

O legado de luta e esperança