Expansionismo penal e irracionalidade punitiva

Em 14 de junho de 2023, às vésperas do recesso parlamentar, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2720/23 que propõe introduzir em nosso ordenamento a figura típica da discriminação contra pessoa policamente exposta. O texto final, que contou com grande redução nas punições propostas, comina pena em abstrato de 2 (dois) a 4 (quatro) anos a quem negar celebração ou manutenção de contratos bancários ou serviços semelhantes a pessoa “politicamente exposta, […]que esteja respondendo a investigação preliminar, a termo circunstanciado, a inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa ou […] que figure como parte ré de processo judicial em curso”[1].

E qual a justificativa para a introdução desta nova hipótese incriminadora? Oficialmente, a autora do projeto, Deputada Federal Dani Cunha (União Brasil/RJ), apresenta como fundamento pressões exercidas pelo Conselho de Atividades Financeiras (COAF) sobre as instituições bancárias. Sustenta que, em um país no qual vigora como garantia constitucional a presunção de inocência, o fato de a pessoa ter sua imagem exposta politicamente ou responder a um procedimento criminal não autoriza a antecipação de sanções, ainda que colaterais. Essa prática implicaria no impedimento de atos necessários à “regular convivência (e sobrevivência) no seio da sociedade”[2].

Em síntese, é possível enxergar dois diferentes fundamentos que convergem neste Projeto de Lei. O primeiro, pode-se supor decorre da experiência pessoal de sua redatora, visa impedir que as informações sobre as atividades de pessoas públicas sejam usadas contra elas, como escusas ideológicas para evitar atendimento; algo inédito em um cenário em que cada passo, palavra e opinião de um agente político é registrado em vídeo e veiculado em recortes para as redes sociais e, portanto, alcance um número muito maior do que sua base eleitoral. O segundo, mais abrangente, consiste na preocupação com a forma pela qual órgãos de persecução produzem constragimentos que não se resumem ao processo penal, não raras vezes fazendo uso de expedientes extrajurídicos, ou desvirtuando medidas cautelares, como forma de arquitetar o cenário mais desfavorável possível aos acusados e investigados. A experiência recente, ainda em digestão pelo sistema de justiça criminal, demonstra como operações midiáticas, em específico a hoje reconhecidamente abusiva Lava Jato, empregaram métodos dessa natureza para a obtenção de delações, confissões e, se acreditarmos nas mais recentes notícias, até mesmo o controle sobre agentes infiltrados entre os investigados.

Em síntese, o que vemos é uma ilustração de um movimento contínuo de expansão e instrumentalização da lei penal. Diante da constatação de que o sistema de justiça criminal é repleto de abusos, propõe-se a ampliação dos instrumentos que alimentam o próprio sistema. Não é difícil vislumbrar que a paradoxal aposta punitiva carece de mínimo sentido.

Quantos crimes existem?

Se propusermos ignorar a peculiar especificidade que permeia o Projeto de Lei, é possível enxergar sua inserção de um movimento amplo de ampliação das hipóteses de uso da violência estatal. Fenômeno que não é exclusivo de nosso país, tendo sido constatado em diversas outras nações, indicativo de um expansionismo penal em curso, ao menos, desde a década de 1970. Paradoxalmente, inchando a atuação repressora estatal ao mesmo tempo em que se reduzem as demais esferas de atuação do poder público[3].         

A questão que sobressai quando nos deparamos com a tendência de expansionismo criminalizatório pode ser assim definida: o que esperamos de um sistema criminal que possibilita cada vez mais a supressão da liberdade dos cidadãos?

Assim formulada, a questão parece já carregar consigo uma resposta. Espera-se que, ampliando o catálogo de ações criminosas, amplie-se a punição. E essa ampliação de prisões e atuações repressivas atuaria para dissuadir a prática de outros comportamentos criminosos. Um consistente reforço à concepção de que a pena produz efeitos de prevenção geral negativa[4].

Essa tendência totalizante da legislação penal atua, porém, em contradição com a função declarada que a fundamenta. Se a criminalização primária – a tipificação do delito –deveria atuar como espécie de “alerta” para dissuasão, pressupõe-se necessariamente que a população em geral saiba precisamente o que é permitido e o que é proibido. Não apenas não é o caso, como a cada nova figura típica introduzida, de forma assistemática ou mesmo em sobreposição a crimes já existentes, torna-se mais improvável que os cidadãos saibam dizer quais ações são passíveis de punição. Nas palavras de David Garland, “as velhas categorias do ‘crime’ e da ‘delinquência’ se tornaram menos óbvias, em termos de padrão de comportamento, e menos absolutas em sua força moral”[5].

No Brasil, talvez o ponto de não retorno já tenha sido ultrapassado. O maior indício dessa conclusão é que até mesmo aqueles que atuam diretamente com o Direito Penal não possuem conhecimento da extensão das ações criminalizadas. De forma a tentar promover mínima organização e sistematicidade à legislação criminal pátria, foi formalizada uma iniciativa conjunta entre o Ministério da Justiça e a Fundação Getúlio Vargas, iniciada em 2007 que resultou no desenvolvimento da plataforma SISPENAS: um banco de dados que contabiliza todos os crimes em vigor. Este levantamento foi concluído apenas em 2010. Ou seja, foram necessários três anos de pesquisa para que especialistas no assunto identificassem todos os tipos penais existentes.

Ao final, foram computados 1.688 (mil seiscentos e oitenta e oito) crimes em vigor no Brasil – àquela época, sendo que a produção legislativa já avançou muito na introdução de novas hipóteses de criminalização. Infelizmente, o projeto foi descontinuado, não existindo dados atualizados. Entretanto, mesmo tomando como universo apenas a legislação em vigor no ano de 2010, não é preciso muito esforço para compreender que, dentre o número expressivo de ações proibidas, aquelas que permeiam o imaginário popular do que se considera delitivo sequer alcança o um centésimo da totalidade[6].

Contenção do poder punitivo como única saída

Quando se vive um país em que a grande maioria das leis penais são desconhecidas, é irracional depositar esperanças em seu cumprimento. Neste ponto, há aparente convergência entre todas as possíveis posições ao Direito Penal. Os abolicionistas e minimalistas, sem dificuldades, concordam na necessária contenção e redução do inchaço punitivo. Aos punitivistas, convidamos a refletir sobre a eficiência de um modelo de persecução que caminha para, a um só tempo, ampliar o número de punições sem reduzir a prática delitiva. Afinal, a estrutura legislativa atual aloca todas as suas fichas em assegurar o maior número de possibilidades de penalização, sem preocupação em tornar compreensível, acessível e de amplo conhecimento o conteúdo das proibições. Com isso, permite-se que os cidadãos descubram que transgrediram sempre após o fato ser encaminhado às instâncias oficiais para processamento. Ou seja, após já ter sido praticado.

A contenção do poder punitivo deve ser prioridade. Do contrário, caminhamos a um sistema que sintetiza o abandono da correlação entre criminalização primária e racionalização da violência estatal. A lei penal se converte em simples instrumento autorizador do uso da violência estatal, sem sequer buscar qualquer resultado positivo ou finalidade racional em sua utilização.

Notas de rodapé

[1] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2294464> Acesso em 12 jun. 2023.

[2] Texto original disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2276307> Acesso em 12 jun. 2023.

[3]Why do we punish so many and criminalize so much? These phenomena are puzzling, because they come at a time when conventional wisdom favor lesser amounts of governmental intervention.” HUSAK, 2008, Overcriminalization: the limits of the criminal law. Nova York: Oxford, p. 15.

[4] “A prevenção geral negativa aparece na forma tradicional de intimidação penal, expressa na célebre teoria da coação psicológica de FEUERBACH (1775-1833): o Estado espera que a ameaça da pena desestimule pessoas de praticarem crimes.” CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 8 ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 454.

[5] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008,p. 205.

[6] ALMEIDA, Caio Patricio de. Hipercriminalização: o sintoma totalitário na política da liberdade. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais v. 24, n. 123, p. 207-231, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

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