Princesa Isabel “Redentora”

O apagamento das lutas abolicionistas

No apagar das luzes, no final de 2022, foi criada pelo governo Bolsonaro a Ordem do Mérito Princesa Isabel, que tinha como intuito homenagear pessoas e entidades que tenham prestado serviços notáveis relacionados aos direitos humanos. Nesta semana, no dia 03 de abril, a medalha foi revogada e instituiu-se o Prêmio Luiz Gama.

A mudança é significativa e totalmente bem-vinda. Aprendemos desde cedo que a Princesa Isabel é a Redentora, aquela que, com sua caneta, libertou em um gesto de bondade os escravizados. No entanto, ao continuarmos com esta visão, apagamos totalmente tudo o que ocorreu durante os quase quatro séculos de escravização no Brasil.

Desde a invasão portuguesa em 1500, nosso país foi construído a partir do sangue e suor dos indígenas e negros. O Brasil foi o último país das américas a abolir a escravidão: prolongou o quanto deu o sistema que sustentava a economia brasileira. A questão é que, no período de oitocentos, a situação já estava um verdadeiro barril de pólvora: pressões externas e internas (insurreições e revoltas) fizeram com que, finalmente, no dia 13 de maio de 1888, fosse assinada a Lei, chamada de Áurea em razão do material da pena, que era de ouro.

Ao percorrer a cidade do Rio, lugar onde moro, percebo as inúmeras homenagens – através de nomes de ruas e monumentos – a pessoas como a Princesa Isabel. Tentamos, a todo custo, incutir na mente da população que a liberdade foi um presente, dado de muito bom grado, quando, em verdade, foi uma conquista. Uma conquista do povo, de pessoas como Dragão do Mar e Luiz Gama, que lutaram contra a escravidão.

É de se refletir o motivo pelo qual conhecemos figuras como a Princesa Isabel e pouco estudamos sobre Luiz Gama. O ensino ainda é através das lentes do colonizador e precisamos mudar isto. Eu conheci a história de Luiz Gama há cerca de 20 anos, quando passeava em sebos e encontrei um livro cujo título me chamou a atenção: Orfeu de carapinha. Levei para casa e comecei a ler. Como diz a escritora Ana Maria Gonçalves, “viva a serendipidade”, já que, através deste encontro fortuito (acredito que os livros nos escolhem), aprendi sobre uma parte da história do nosso país que me foi negada durante muito tempo.

Luiz Gama nasceu no dia 21 de junho, mesmo dia de Machado de Assis, com uma diferença de nove anos: aquele em 1830 e este em 1839. Aos 7 anos foi vendido pelo próprio pai, como escravizado, para quitar uma dívida de jogo. Sua mãe era Luisa Mahin, um dos principais nomes da Revolta dos Malês, a maior revolta de escravizados que ocorreu no Brasil, em Salvador, 1835. Aprendeu a ler e a escrever aos 17 anos e conseguiu provar que nasceu livre, reconquistando sua liberdade. Não tinha diploma, mas isto não o impediu de atuar na defesa de escravizados. Era autodidata e, como até o início dos anos 1930, era possível atuar em processos de primeira instância sem o diploma, tornou-se advogado provisionado[1]. Com sua brilhante atuação, libertou mais de quinhentos escravizados. Tinha consciência da importância da luta abolicionista e assim o fez, defendendo de graça inúmeros irmãos[2]. Recebeu até ameaças de morte[3], mas seguiu firme em seu propósito.

Gama entendia como funcionava o sistema opressor e cruel e sempre se posicionava: quer através da atuação jurídica, quer em seus escritos em jornais. Em um caso de linchamento de quatro homens escravizados que mataram o filho de um fazendeiro, ele escreveu[4]:

Quando, porém, por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do instinto revoltado, levantam-se, como a razão, e matam o senhor, são metidos ao cárcere.

Enquanto diversos membros do Congresso tentavam a todo custo defender os interesses dos senhores, adiando ao máximo a abolição, utilizando argumentos pífios como “é um sistema cruel, mas ainda necessário” e “não saberão se virar sozinhos”, Gama assim dizia[5]:

Cumprida a lei (referia-se à Lei Feijó), uma única providencia restará: a pronta emancipação dos escravos. A emancipação pronta e sem indenizações. (…) o homem emergiu livre dos arcanos da natureza; prepará-lo para a liberdade é um pretexto fútil farisaico, um crime hediondo que nós, democratas, devemos repelir com indignação.

Passei a faculdade inteira de direito sem ouvir qualquer menção a Luiz Gama. Eu, que já tinha o livro Orfeu de carapinha em mãos, fiquei perplexa ao ver como foram mencionados diversos nomes como o de Evaristo de Moraes e, em nenhum momento, um dos maiores abolicionistas do país foi citado. Tenta-se apagar da história figuras como Gama, que apenas em 2015 recebeu o título de advogado pela OAB[6]. Ele, que tanto lutou pela liberdade, que tantas defesas fez na tribuna, que atuou de forma combativa contra a escravidão, recebeu a homenagem 133 anos após sua morte! Em um passado bem recente, mais precisamente em 2021, recebeu o título de doutor honoris causa pela USP[7]. O Brasil, aos poucos, começa a destacar nomes de pessoas como Gama, que fizeram a nossa história.

É, portanto, extremamente bem-vinda a revogação da medalha Princesa Isabel e a instituição de um Prêmio que traz o nome de Gama. Não se trata de uma “firula” qualquer, de algo desnecessário. Que saibamos compreender a importância de valorizarmos feitos como o de Gama. Que, ao percorremos as ruas de nossas cidades, a gente reflita e pesquise sobre quem são os homenageados. No processo de luta por direitos, de construção de nosso país, de cidadania, nada foi “dado”, tudo foi conquistado. Viva, Gama!

Notas de rodapé

[1] Ligia Fonseca Ferreira ensina que o termo “advogado provisionado” é preferível ao termo “rábula”, em razão de conotações pejorativas. In: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Imprensa Oficial. p. 184.

[2] “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo a violência”. In: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Imprensa Oficial, 2019. p. 95.

[3] “Sou detestado pelos figurões da terra, que me puseram a vida em risco, mas sou estimado e muito pela plebe”. Carta a José Carlos Rodrigues. Idem, p. 196.

[4] PINTO, Ana Flavia Magalhães. Escritos e liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. p. 101

[5] Idem, p. 71.

[6] Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/60155/luis-gama-140-anos-da-morte-de-um-dos-maiores-defensores-da-liberdade-e-do-direito#:~:text=Autodidata%2C%20ele%20aprendeu%20direito%20sozinho,de%20sua%20morte%2C%20em%201882. Acesso em 06 abr. 2023.

[7] Disponível em: https://jornal.usp.br/institucional/abolicionista-luiz-gama-recebe-titulo-de-doutor-honoris-causa-postumo-da-usp/ Acesso em 06 abr. 2023.

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