Quanto mais idiota melhor: a política criminal do açoite

A "solução" de Peter Moskos para o hiperencarceramento

No artigo passado, fiz alguns comentários críticos acerca da famigerada “criminologia do satanismo”[1], de Cláudia Borato – esta pérola do apedeutismo criminológico brasileiro. Para que não se alegue, por puro complexo de vira-lata, que a idiotice é monopólio dos que se encontram abaixo da linha do equador, estejamos certos: vira e mexe, ela se manifesta em todas as latitudes. Para demonstrá-lo, vejamos algo que vem sendo defendido por uma voz dissonante dos Estados Unidos: uma proposta inusitada de política criminal para combater o hiperencarceramento.

Do Brasil à China, da Rússia aos Estados Unidos, o hiperencarceramento é a expressão mais nítida da falência do sistema prisional, de sorte que, especialmente nesses países, é imprescindível pensar políticas públicas que venham a contribuir para uma redução substancial dos índices de encarceramento. Isto posto, é evidente que o autor assume um objetivo legítimo, mas a ênfase no pensar, na reflexão crítica e bem fundamentada é incontornável, pois é o fundamento de que depende a efetividade do intento. Afinal, convém lembrar que “o inferno é pavimentado de boas intenções”[2].

Desta vez, como em outras tantas, o tiro saiu pela culatra. Peter Moskos, ex-policial e atual professor da John Jay College of Criminal Justice (Departamento de Direito, Ciência Política e Administração da Justiça Criminal) e do CUNY Graduate Center (Departamento de Sociologia), é responsável pela introdução daquele que talvez seja o debate político-criminal mais estapafúrdio de todos os tempos. E ninguém melhor que ele mesmo para anunciar sua fórmula mágica do desencarceramento[3]:

Há 2.3 milhões de americanos na prisão. Isto é demais. Quero reduzir a crueldade, e açoitar pode ser a resposta. Minha aposta inicial é simples: se você pudesse escolher entre cinco anos de prisão ou cinco chicotadas brutais, qual você escolheria?

Parem as prensas! O gênio saiu da lâmpada e fez do mundo a sua morada. Quem poderia imaginar que a solução para os nossos problemas estaria lá, onde mais ninguém foi capaz de ver: no retorno às penas corporais. Finalmente nós, brasileiros, poderemos nos orgulhar de alguma coisa em matéria político-criminal: nosso Código Criminal de 1830, onde já se achava a pena de açoitamento, é vestígio histórico da política penal do futuro. O único inconveniente é que teremos de ressignificar a obra de Debret, que, de crítico implacável do escravismo, terá de ser convertido em apóstolo da chibata.

Pode-se imaginar o encantamento do autor quando, ainda policial, entre uma rosquinha e uma caneca de café, ouviu algum colega enunciar um trolley problem:

O trenzinho vem vindo, seguindo o seu curso natural. No caminho há uma bifurcação: do lado esquerdo, uma pessoa está amarrada aos trilhos; do lado direito, são cinco as pessoas amarradas. Não é possível parar o trem, que, tudo mais constante, fará cinco vítimas. Entretanto, você, e só você, pode acionar uma alavanca e desviá-lo para a esquerda, o que implica matar um único sujeito. Eis a questão: agir para salvar cinco vidas ou se omitir, deixando que o trem mate a pessoa.

Este tipo de experimento mental é frequentemente empregado, em aulas de ética e psicologia, com o objetivo de discutir a relação entre “agir” ou “aceitar o dano”, assim como em treinamentos de policiais e grupos de elite, preparando o agente para que aprenda a lidar com situações-limite. Ora, se a indagação de Moskos fosse um mero experimento mental desse tipo, aplicado com o objetivo de demonstrar que, para um número substancial de pessoas, as cinco chibatadas seriam preferíveis a cinco anos de prisão, donde haveria algo de muito errado com a nossa maneira de punir, não haveria maiores objeções.

O problema é reduzir toda a política criminal a um único trolley problem – “cana” ou chicote –, revelando uma total falta de imaginação filosófica e criminológica, além de criar uma pseudoquestão, das mais mentecaptas, e querer que os outros o levem a sério. Tanto é assim que, no parágrafo conclusivo do livreco, ele se dirige novamente ao leitor, recorrendo a um tom de insuportável autopenitência, tão peculiar aos néscios bem-intencionados[4]:

Espero que você veja que precisamos encontrar uma nova forma de punir, uma opção que não sujeite os infratores e a sociedade a esse fracasso caro e imoral [a prisão]. Se açoitar é essa opção, bem, então traga o chicote.

A pergunta que não quer calar (e que o autor sequer é capaz de responder): por que esta seria a única alternativa? Por que investir em um reducionismo tão tosco e abrutalhado? Será possível que a falta de imaginação galgou um patamar tão inaudito, que toda a política criminal recaiu numa escolha entre modo de punição escravagista ou modo de punição capitalista?

Notas de Rodapé

[1] https://www.introcrim.com.br/post/criminologia-do-satanismo

[2] In: BOSWELL, James. Boswell’s life of Johnson. London: Oxford University Press, 1953, p. 624.

[3] MOSKOS, Peter. In defense of flogging. New York: Basic Books, 2011, p. 1.

[4] Ibidem, p. 83.

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