Quanto vale a vida de um jovem negro?

O caso Emmett Till, a sociedade racista e a força do depoimento de uma mulher branca

Tenho o hábito de conferir, diariamente, os acontecimentos do dia. Na semana passada, no dia 06 de janeiro, assim o fiz quando acordei e verifiquei que, há exatos 20 anos, morria Mamie Elizabeth Till-Mobley, mãe de Emmett Till.

Coincidência ou não, eu terminava de assistir à série Mulheres do Movimento (Women of the movement), produzida por Will Smith e que narra a luta de Mamie, que teve seu filho Emmett Till brutalmente assassinado em 1955.

Separados, mas iguais

Durante décadas, a doutrina vigente nos Estados Unidos era a do “separados, mas iguais”[1], que estabelecia, legalmente, a segregação racial. Com isso, não poderia ser alegada violação à 14ª Emenda – que garantia a proteção e direitos civis a todos os cidadãos – a separação em serviços públicos, como escolas e ônibus, de pessoas brancas e negras.

Em 1954, a Suprema Corte decidiu no caso Brown vs. Board of Education pela integração nas escolas públicas. Aos poucos, graças ao movimento pelos direitos civis, liderado por figuras importantes como Martin Luther King, o cenário ia mudando. No entanto, sabemos que não basta termos leis que assegurem direitos e, naquele momento, nenhum lugar do sul dos EUA era seguro para pessoas negras.

O caso Emmett Till

Emmett tinha apenas 14 anos. Pela primeira vez, saiu de sua casa em Chicago para viajar para a casa de seu tio Moses, no Mississippi. Já na viagem de trem, começou a compreender o que era a segregação, com a exigência de pessoas negras viajarem em vagões distintos de pessoas brancas.

No dia em que entrou em uma loja de conveniência, Emmett teria supostamente assobiado para uma mulher branca, chamada Carolyn Bryant, de 21 anos. O fato se espalhou rapidamente pela cidade e, na noite do dia 28 de agosto de 1955, J.W.Millan e Roy Bryant (noivo de Carolyn) foram até a casa de Moses e sequestraram, torturaram e assassinaram Emmett.

Emmett, um menino de apenas 14 anos, foi colocado na parte traseira da caminhonete e levado para um galpão em uma cidade vizinha chamada Sunflower County. Lá, foi espancado pelos dois algozes, que lhe arrancaram um olho e o mataram. Um descaroçador de algodão de 30 quilos foi amarrado em seu pescoço com arame farpado e ele foi atirado no rio Tallahatchie. Seu corpo foi encontrado três dias depois, completamente desfigurado.

O Judiciário Racista e a força do depoimento de uma mulher branca

A luta de Mamie começa quando recebe um telefonema sobre o desaparecimento de seu único filho, um garoto negro, em um Estado sulista. Alimentava esperanças, mas sabia que no Mississippi linchamentos ocorriam e o local era um barril de pólvoras quanto a tensões raciais.

A notícia indesejada chega. Seu filho foi assassinado. Ao reconhecer o corpo de Emmett, ela consegue – após muita resistência – enterrá-lo em Chicago e não em Mississippi, exigindo ainda um funeral com o caixão aberto, já que queria que todas as pessoas vissem a atrocidade que tinham feito com seu filho.

Quando falamos na importância de um judiciário antirracista, podemos ver historicamente, a diferença na prática. É como se entrássemos em uma partida de futebol já sabendo que o jogo está perdido. É como se fosse armado um verdadeiro espetáculo, para apenas “cumprir as formalidades”, mas que, na prática, não respeitará os princípios constitucionais.

Emmett Till e sua mãe, Mamie Till. Foto: Collection of the Smithsonian National Museum of African American History and Culture

O julgamento de Emmett Till por um juiz togado e pelo júri, composto apenas de pessoas brancas, sem qualquer letramento racial (e, naquele caso, pessoas racistas), certamente já nos entregava o resultado antes mesmo do fim do processo.

E aí vem a cereja do bolo: o depoimento da suposta vítima do assédio, Carolyn, que, além de confirmar o assobio de Emmett, afirma que Emmett a agarrou e a ameaçou. Uma mulher branca, confirma em sede judicial, o “mito da sexualidade exacerbada do homem negro”[2], um verdadeiro animal, que parte para cima de mulheres brancas indefesas. Este mito vinha sendo reforçado pela literatura e pelo cinema, com filmes como O nascimento de uma nação, de 1915, em que uma mulher branca prefere se jogar do precipício, após correr em pânico de Gus, um homem negro.

O júri branco não precisou de muito tempo para deliberar e decidir. Afinal, em suas mentes, não poderiam deixar que as mulheres brancas de sua cidade corressem riscos. Não poderiam deixar que outros “predadores” negros ameaçassem suas mulheres. Em 23 minutos, absolveram os dois homens brancos que ceifaram a vida de um jovem negro.

Pouco tempo depois, em 1956, a Revista Look pagou uma quantia para Milam e Bryant, que confessaram. Como existe nos EUA a regra do Double Jeopardy, de que uma pessoa não pode ser julgada pelo mesmo crime duas vezes, eles estavam seguros e o crime ficou impune.

Mamie e o Movimento dos Direitos Civis

O caso de Emmett Till se tornou um símbolo para o movimento dos direitos civis. Rosa Parks, presa no boicote aos ônibus de Montgomery, chegou a dizer que pensava em Till e sabia que não poderia voltar atrás.

Mammie se formou na Universidade de Chicago e foi professora e ativista. Viveu até 06 de janeiro de 2003, sem ter a confirmação do que ela, como mãe, já sabia sobre seu filho. Ela sabia que o racismo, a segregação e a palavra de uma mulher branca seriam cruciais para o resultado do julgamento, mas o mundo também precisava saber.

Apenas em 2007 Carolyn confessa que mentiu em suas declarações. Não houve assédio e nem ameaça por parte de Emmett. Esta mulher branca durante mais de cinquenta anos, viveu sua vida sem se pronunciar sobre o que realmente aconteceu. Além de cometer o crime de falso testemunho, ao afirmar

O caso de Emmett Till infelizmente não foi o único que demonstra a total ausência de valor da vida de pessoas negras para uma sociedade racista. Quantos homens negros foram presos injustamente sob falsas acusações? Quantos foram assassinados? Não são “casos isolados”, como alguns costumam afirmam. É genocídio das pessoas negras.

No Brasil, a cada vinte e três minutos um jovem negro é assassinado. Quantas Mamies existem, lutando por justiça e desejando que isso não mais aconteça com outras crianças? Já dizia James Baldwin: “Ser negro e relativamente consciente é estar quase sempre com raiva”. E se você ainda acha que é tudo “mimimi”, você ainda não entendeu (ou não quer entender) nada.

Notas de Rodapé

[1] A primeira decisão a mencionar a expressão foi proferida em 1890, na Luisiana. Seis anos depois, em 1896, por sete votos a um, a Suprema Corte no caso Plessy vs. Ferguson decidiu pela constitucionalidade do direito dos Estados em segregar as pessoas por raça.

[2] COLEMAN, Robin R. Horror Noire. Rio de Janeiro: Darkside. p. 68.

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