Hoje é dia de comemorar, mas não nos apaixonemos pelo momento.

Lutamos o bom combate, e vencemos. O que se observou no dia de ontem foi, sem dúvida alguma, um marco na história política brasileira – e pudemos observá-lo conjuntamente, participando ativamente, enquanto agentes da história. Contra toda a calhordice do adversário, que se valeu da máquina estatal, praticando todos os crimes eleitorais possíveis e imagináveis, desesperado que estava, vencemos. Contra o golpismo desavergonhado, que levantou dúvidas quanto a lisura do processo eleitoral, questionou a legitimidade de institutos de pesquisa e mobilizou parte significativa da população em uma guerra aos tribunais superiores, vencemos. Contra a banalização da violência, com a escumalha de sempre armada até os dentes, mirando as classes populares e agredindo adversários políticos, em prol de um ditador de opereta, vencemos. Nem o tal Silvinei Vasques, diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF), bolsonarista convicto e confesso, logrou calar as vozes do Nordeste. Ao lutarmos o bom combate, sem aceitar as constantes provocações, alcançamos uma vitória histórica.

O dia seguinte é para se comemorar, é claro, mas é fundamental que não nos apaixonemos pelo momento: carnavais são maravilhosos, mas frequentemente custam caro[i] – especialmente porque nos cegam para o que acontece por debaixo dos panos, ainda mais considerando que o que a parte interessada quer mesmo é “fazer a boiada passar”. bolsonaro é minúsculo, e nem todos os recursos materiais de que dispunha foram suficientes para reelegê-lo; mas não acreditemos, ingenuamente, que o bolsonarismo foi definitivamente derrotado. Não é verdade: basta verificar o enorme contingente de deputados e senadores bolsonaristas eleitos. Lula venceu as eleições, o que não é pouco, mas prossigamos com cautela.

O Brasil foi transformado em uma panela de pressão, e os próximos meses não serão nada fáceis, seja porque o atual mandatário do executivo federal é alérgico à democracia, seja porque a política de terra arrasada posta em marcha se aprofundará, de modo a dificultar ao máximo as circunstâncias político-econômicas com as quais Lula terá de se haver.

Está certo que não há suporte político e institucional para o golpismo de bolsonaro, porém não se pode negar que suas ideias aberrantes frequentemente adquirem força material, quando absorvidas e praticadas por sua malta: o discurso inflamado contra as instituições, contra Lula e demais membros do Partido dos Trabalhadores (PT), contra a esquerda em geral, contra “tudo isso que tá aí” vem redundando em violência nas ruas. Veja-se, a exemplo disso, a última reação destemperada e criminosa de Carla Zambelli (PL), que perseguiu, de arma em punho, um homem negro, no cruzamento das alamedas Lorena e Joaquim Eugênio, em São Paulo. Ouvida pela polícia, a deputada inventou uma história sem pé nem cabeça para justificar o ocorrido, mas, por sorte, já foi desmentida pelos fatos, pois já vieram a público filmagens feitas por gente que circulava pelo local.

Felizmente, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já determinou que a conduta da deputada seja investigada. Todavia, como indiquei acima, o comportamento de Zambelli, malgrado desprezível, é apenas um entre os tantos exemplos do que se tornou a vida política brasileira. À moda de Laranja Mecânica[ii] (1971), a fascistização contemporânea vivificou as piores distopias do passado, pois a dinâmica da violência não mais depende das ordens expressas de um líder aos seus subalternos: ela passou a configurar a tônica das relações de sociabilidade, bastando que aqueles que detêm o poder e o dever de reagir à barbárie cruzem os braços. E é justamente isso que vem acontecendo, e é isso que tende a se agravar nos próximos meses. Todo cuidado é pouco.

E bolsonaro? Sequer teve a decência e a coragem de discursar aos seus apoiadores. Lula, em contrapartida, fez o que se esperava dele: um belo discurso, centrado no restabelecimento da democracia brasileira.

Nossa tarefa agora é muito simples: é hora de nos organizarmos. Mobilizações políticas são essenciais, mas insuficientes. O adversário é inescrupuloso e não dorme.

Notas de rodapé

[i] Veja-se, a esse respeito, um arguto ensaio: ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Trad.: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2012.

[ii] BURGESS, Anthony. Laranja mecânica. 3ª. Ed. Trad.: Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2019.

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