Rebeliões em presídios brasileiros

A contribuição de Vitor Stegemann Dieter para o fenômeno das rebeliões em presídios brasileiros.

No mundo do Direito, a maior parte das discussões sobre o funcionamento do sistema de justiça criminal concentra-se nos momentos que antecedem a condenação; em termos processuais, estão focadas no chamado processo de conhecimento, responsável por aquilo que entendemos comumente como o julgamento das diferentes causas. No entanto, essa seletividade muitas vezes ignora que “dizer o direito” é apenas a primeira etapa de um processo de controle social: uma vez determinada a pena, é preciso que ela seja cumprida; é preciso executá-la.

As instituições prisionais — o locus da execução penal propriamente dita — são os espaços de predileção para o cumprimento de penas no Brasil contemporâneo. Tamanha é a nossa crença na necessidade desses espaços que, mesmo quando há uma resposta jurisdicional a um determinado crime, se a pena não envolve alguma forma de encarceramento, logo declaramos um estado de “impunidade”.

Essa confiança, no entanto, é marcada por uma característica particular: é uma confiança cega. A partir do momento em que um indivíduo é depositado em uma das unidades do sistema prisional brasileiro, não nos interessa o que acontecerá com ele. Superlotação? Agentes penitenciários sobrecarregados? Ausência de quaisquer condições básicas? Nada disso importa (exceto, talvez, quando esse mínimo existencial é cumprido; aí ouvimos reclamações de uma suposta “boa vida” dos presos)[1].

Assim passamos nossas vidas: “gente de bem, apressada, católica”. Nossa curiosidade pelo funcionamento desses espaços só é despertada em momentos muito específicos, normalmente envolvendo o estabelecimento do que percebemos como “crises” no seu funcionamento — especialmente quando essas “crises” tomam a forma explícita de rebeliões. É então que aquilo que tanto ignoramos extrapola os muros do presídio, e se nos aparece de maneira excepcionalmente midiatizada: por mais que nos esforcemos em erguer barreiras físicas ou mentais, não há como isolar, concreta e permanentemente, um aspecto de uma realidade conflitual da totalidade da vida social.

O problema das rebeliões prisionais é precisamente o tema do último artigo de Vitor Stegemann Dieter, professor da nossa pós-graduação em Direito Penal e Criminologia. Publicado como parte de uma coletânea de perspectivas do Sul-Global sobre a questão criminal, o trabalho apresenta o resultado de um extenso estudo etnográfico sobre o fenômeno das rebeliões prisionais no estado do Paraná, entre 2002 e 2015, contribuindo de forma inédita para a explicação desses fenômenos na realidade brasileira[2].

De acordo com Dieter, tradicionalmente, duas foram as principais matrizes explicativas para o fenômeno das rebeliões prisionais. A primeira, partindo de uma perspectiva denominada “realismo de direita”, identifica a causa das rebeliões como decorrente da desorganização do Estado: incapaz de manter a ordem, a administração prisional abre espaço para a erupção de rebeliões, como situações patológicas em relação a um funcionamento “normal”. Essa é a hipótese defendida por Bert Useem e Peter Kimball, por exemplo, e está focada nos elementos técnicos de controle social da administração prisional[3].

A segunda perspectiva, vinculada a estudos especificamente brasileiros, identifica a causa dessas rebeliões em um elemento de agência organizacional das facções criminosas. Embora a existência das péssimas condições estruturais das prisões torne-as ambientes propícios à erupção de rebeliões, Fernando Salla e Sérgio Adorno, defensores dessa segunda hipótese, propõem uma explicação alternativa para sua ocorrência[4]. Para além dessas condições necessárias, porém insuficientes, a efetiva “detonação” de rebeliões dependeria da ação das organizações criminosas presentes nesses espaços, sobretudo na disputa pelo poder e pelo controle dos mercados ilegais do presídio, assistida pelo papel de observador passivo do Estado brasileiro[5].

Embora distintas, ambas as perspectivas são marcadas pela concepção implícita de que as rebeliões seriam fenômenos patológicos (crises) em relação ao funcionamento de uma ordem “normal” dos estabelecimentos prisionais.

O que elas ignoram, ao partir desse limitado nível de abstração teórica, é justamente como esses fenômenos, por serem indissociáveis das relações de poder nas prisões, representam, na realidade, um elemento central – e normal – da vida prisional brasileira. E não precisamos ir longe para perceber a existência de incontáveis “particularidades”: qualquer pessoa que tenha notícia do funcionamento concreto de presídios em nosso país consegue identificar exemplos dessa gestão compartilhada em figuras como o “disciplina” e o “faxina” – presos de confiança, responsáveis pela administração imediata de conflitos e recursos nos diferentes pavilhões de uma instituição prisional.

Crítico a essa perspectiva liberal da ordem prisional, Dieter contextualiza sua contribuição em meio a uma tradição que identifica a ordem prisional brasileira como constituída por uma necessária cogovernança entre autoridades estatais e a própria população prisional. Em vez de tratar desse processo a partir de uma lógica de governança, entretanto, sua análise propõe a interpretação dessas relações sociais como parte de uma disputa hegemônica, no sentido gramsciano: como a manutenção do domínio depende não apenas da coerção, mas também de um nível de consentimento daqueles dominados, essas seriam relações sociais naturalmente instáveis, levando à possibilidade de revolta e de operacionalização de guerras de manobra ou de posição, por parte dos diferentes grupos envolvidos.

O fundamento da discussão

Os três estudos de caso selecionados ilustram a complexidade das dinâmicas prisionais, ajudando a demonstrar como explicações monocausais são insuficientes e, no limite, mistificadoras. O primeiro, focado na Penitenciária Estadual Central do Paraná, expõe como os responsáveis imediatos pela gestão da prisão podem ser instrumentais na eclosão de rebeliões, sobretudo quando tomam partido nas disputas de poder pelas diferentes facções, contradizendo a hipótese tradicional de sua espontaneidade e dependência exclusiva da agência das facções. O segundo, detalhando os eventos na Penitenciária Industrial de Guarapuava, mostra que mesmo em prisões com condições ótimas e sem atividade de facções, rebeliões ainda podem ocorrer – neste caso, desencadeada por mudanças na interpretação legal da progressão de regime prisional. O terceiro estudo revela como os conflitos entre os agentes penitenciários e o governo estadual levaram a um aumento nos motins prisionais, contrariando a hipótese predominante de que tais eventos necessariamente resultariam de condições deterioradas ou de um aumento da violência entre “gangues”.

Essa hipótese explicativa decorre da incongruência entre os três estudos de caso que fundamentam o artigo e as hipóteses tradicionais. Primeiro, em contraposição à tradição neoconservadora de Useem e Kimball, os estudos de casos de Dieter demonstram como uma aderência a um modelo explicativo monocausal representa uma concepção insuperavelmente limitada da realidade. Embora a capacidade de organização e intervenção das autoridades estatais seja fundamental para a compreensão da dinâmica das rebeliões, seu funcionamento efetivo depende de uma interação de diferentes grupos de interesse, incluindo também diferentes facções criminais, agentes penitenciários e autoridades executivas e judiciais. Assim, uma hipótese que ignore essas relações e favoreça um foco exclusivo no papel do Estado se demonstra inadequada enquanto explicação para o fenômeno das rebeliões.

Por outro lado, os três casos sugerem que, embora a agência das facções criminosas também seja central para a compreensão das rebeliões, ela necessariamente passa por uma série de mediações não reconhecidas nos trabalhos de Salla e Adorno. Com o benefício do matiz das relações já mencionado, torna-se possível identificar como a dinâmica de poder dentro do presídio não depende apenas das ações das facções, mas também da participação de outros grupos de interesse.

Essa, contudo, não é a única interpretação distinta apresentada por Dieter em relação à contribuição dos brasileiros. Enquanto no modelo proposto por Salla e Adorno as facções criminosas são apresentadas como entidades patrocinadoras de violência desenfreada, assumindo uma posição similar a uma instituição terrorista, Dieter identifica como esses atos de violência são mais bem compreendidos como ações estratégicas no contexto da disputa hegemônica. Em vez de generalizar as ações como orientadas para a instrumentalização do terror de maneira indiferenciada, sua contribuição demonstra como tais estratégias são frequentemente excepcionais e indesejáveis, em decorrência da incapacidade de controle de seus efeitos e da potencial piora das condições dos presos no longo prazo; prisioneiros, portanto, tenderiam a evitar esse tipo de prática, buscando obter concessões menores dentro da ordem estabelecida ou se abstendo indefinidamente, devido aos riscos relacionados a essas ações.

As contribuições de Dieter

A principal contribuição do artigo, entretanto, está na sistematização de elementos propostos nestes e em outros trabalhos a partir da categoria “hegemonia” de Antônio Gramsci. Ao apresentar as rebeliões como estruturadas a partir de uma inerente instabilidade, marcada por disputas constantes e conflitos entre os grupos em posição de dominador e dominado, seu trabalho indica como a compreensão do fenômeno das rebeliões é especialmente reveladora das contradições, limites e disputas na moldagem da ordem prisional — não como um aspecto excepcional, mas como uma característica fundamental e inescapável de uma particular organização social. Os processos de coerção e construção de consentimento na dominação prisional são apresentados em seus mecanismos mais sutis, operacionalizados não apenas por uma relação dualista entre Estado e detentos, mas envolvendo também agentes penitenciários e autoridades da política criminal como um todo.

O que torna a contribuição de Dieter especialmente rica é, em minha opinião, sua preocupação com pressupostos ontológicos e epistemológicos específicos. Embora não faça menção explícita a essas questões, sua inscrição na tradição do “realismo de esquerda” permite – e talvez exija – a interpretação de seu trabalho a partir de um esquema conceitual geral específico, fundamentado na obra de Roy Bhaskar.

Partindo do materialismo qualificado de Bhaskar, poderíamos dizer que Dieter incorpora em seu trabalho uma concepção da realidade como estratificada, complexa e emergente[6]. Ao partir de uma necessária distinção entre o que podemos chamar de diferentes níveis de realidade (i.e., empírico, efetivo e real), seu trabalho logra propor uma explicação fundamentada não apenas em relações imediatas de causalidade (ações das facções criminosas), mas sim em mecanismos causais mais complexos (disputa de poder em um contexto de hegemonia).

Ademais, rejeitando a ideia de que a vida social seja um sistema fechado, permite que identifiquemos a transfenomenalidade (distinção entre aparência e essência) e a contrafenomenalidade (possível contradição lógica em sistemas materiais) das diferentes causas específicas das rebeliões a partir de um movimento mais amplo e complexo[7]. Ele reconhece que a ordem prisional brasileira é constituída por disputas necessárias entre autoridades estatais e a própria população prisional, enfatizando a luta de poder e disputas hegemônicas inerentes a este cenário.

Em suma, a pesquisa de Dieter preenche uma lacuna fundamental na compreensão das rebeliões prisionais no Brasil, desafiando visões simplistas e monocausais dos levantes prisionais, ao sugerir que a realidade é muito mais complexa, envolvendo diversas partes interessadas e mecanismos interligados. Sua abordagem multifacetada e seu uso cuidadoso da teoria gramsciana da hegemonia proporcionam uma visão abrangente das dinâmicas do poder nas prisões e aprofundam a nossa compreensão das rebeliões e da vida prisional em geral. Para verdadeiramente apreciar a profundidade de seu argumento, é essencial ler o artigo original — o que pode ser feito por meio deste link. Além de oferecer uma nova perspectiva sobre as rebeliões prisionais, ele também nos desafia a pensar de maneira mais crítica e complexa sobre as nossas próprias concepções do sistema de justiça criminal.

Notas de rodapé

[1] A reação não é sem explicação, contudo, visto que parte da ideia de less-eligibility, de que “as condições de vida no cárcere devem ser acentuadamente piores que as condições de vida dos mais precários trabalhadores livres para que preserve seu caráter punitivo e se mantenha devidamente dissuasor[ia] diante do custo da opção de delinquir”. Sobre o conceito, ver: CACICEDO, Patrick Lemos, O Princípio da Less Eligibility, a Legalidade na Execução Penal e os Tribunais Superiores, Revista da EMERJ, v. 18, n. 67, p. 306–316, 2015.

[2] DIETER, Vitor Stegemann. Rioting Struggles in Brazil: Prison Gangs, Staff and Criminal Justice Hegemony. In: CAVALCANTI, Roxana Pessoa; SQUIRES, Peter; WASEEM, Zoha (Orgs.). Southern and Postcolonial Perspectives on Policing, Security and Social Order. 1. ed. Bristol: Bristol University Press, 2023, p. 144–168. Disponível em: https://www.academia.edu/102546742/Rioting_Struggles_in_Brazil_Prison_Gangs_Staff_and_Criminal_Justice_Hegemony.

[3] USEEM, Bert; KIMBALL, Peter A. A Theory of Prison Riots. Theory and Society, v. 16, n. 1, p. 87–122, 1987. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/657079. Acesso em: 8 jun. 2023.

[4] ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Organized criminality in prisons and the attacks of the PCC. Estudos Avançados, 2007.

[5] SALLA, Fernando. As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. Sociologias, n. 16, 2006. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/5613. Acesso em: 8 jun. 2023.

[6] BHASKAR, Roy, A Realist Theory of Science, London & New York: Routledge, 2008.

[7] SAYER, Andrew, Method in Social Science, 2. ed. London & New York: Routledge, 2003. p. 106.

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