Acredito que a maioria da população acompanhe novelas. Atualmente, a transmissão é diária e temos diversas opções – de canais, horários e tramas. Várias histórias, um vasto elenco, majestosos cenários. Nem sempre foi assim, afinal, tudo tem um começo, certo? Inspirada nas radionovelas, no não tão distante ano de 1951, a primeira telenovela brasileira esteava, na hoje extinta TV Tupi. Sua vida me pertence tinha apenas dois cenários e era transmitida ao vivo duas vezes por semana.
A inauguração da TV Globo, em 1965, trouxe logo no início a contratação do ator e diretor Milton Gonçalves[1]. Filho de pedreiro e empregada doméstica, Milton teve uma primorosa carreira, atuando em peças e cerca de setenta filmes, dentre eles A Rainha Diaba. No entanto, engana-se quem pensa que esta trajetória foi fácil. Militante do movimento negro, Milton não queria ascender socialmente de forma individual. Sabia que a luta era coletiva[2]:
“A minha grande luta é a inclusão. A grande maioria pobre, negra, brasileira, sofre ainda os rescaldos do massacre de quinhentos anos”.
Milton Gonçalves
Por longas décadas, havia total falta de representatividade de pessoas negras nas novelas. Já tivemos, inclusive, blackface na novela A cabana do Pai Tomás, de 1969. Para o papel de um homem negro, foi escalado… um ator branco, Sérgio Cardoso (!!!!) Curiosamente, o ator interpretou três personagens na mesma novela: o ex-presidente Abraham Lincoln, Dimitrius e Pai Tomás. Para viver o Pai Tomás, Cardoso não apenas pintou seu rosto de preto, como colocou uma peruca e rolhas para espaçar as narinas e deixar o nariz mais grosso. Nesta mesma novela, Dona Ruth de Souza — que já tinha vasta experiência, atuando no Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, o TEN — foi escalada para viver Cloé. Mais um absurdo: ela, que era protagonista, teve seu nome colocado nos cartazes depois do nome das atrizes brancas e sua participação no decorrer da novela foi minguando.
Como eu sei que sempre teremos quem justifique o injustificável, dizendo ainda que “todo mundo era assim naquela época”, eu cito aqui Plínio Marcos, dramaturgo e ativista, que se insurgiu contra o blackface e sugeriu o nome de Milton Gonçalves para o papel. Sim, pessoas antirracistas se posicionam desde sempre, fazendo cair por terra o confortável “argumento” de que racistas eram assim por serem “pessoas do seu tempo”. Com a onda de protestos, em uma tentativa de acalmar os ânimos, Milton – que já havia militado no TEN – foi chamado para apoiar a escalação de Sergio Cardoso, algo que, apesar de medo de represálias, se recusou a fazer.
Sobre estereótipos, em texto anterior falei sobre a trajetória da atriz Hattie McDaniel e a sua eterna escalação para papeis de mommy, mesmo após ter vencido o Oscar de atriz coadjuvante. No Brasil, isto ocorreu com a atriz Cleia Simões, cuja carreira foi iniciada na década de 60. Na novela Laços de Família, de 2000, por exemplo, ela é a antiga babá dos filhos de Miguel (vivido por Toni Ramos). Uma mulher negra, já idosa, que mora na casa deles e que passou a vida cuidando e servindo. Afinal, ela é “da família”.
Nesta mesma novela, temos a personagem Zilda, vivida por Thalma de Freitas. Empregada doméstica, ela trabalha na casa de Helena (Vera Fischer) em um regime de real escravidão: sua jornada de trabalho é exaustiva, está sempre pronta para atender aos pedidos de Dona Helena (“cafezinho, Dona Helena?”), trabalha de segunda a segunda com um sorriso no rosto e não sabemos nada sobre sua vida, seus gostos, sua família e amigos. Como se não bastasse, além de fazer tudo na casa de Helena, passa depois a trabalhar na casa de Camila (Carolina Dieckman) e Edu (Reinaldo Gianecchini) e ainda fica de babá dos filhos de Fred (Luigi Barricelli) e de Capitu (Giovanna Antonelli). Ela, basicamente, vive para servir e assim o faz com um sorriso no rosto, grata por “pertencer” àquela família. Sobre o papel, Thalma disse que “enquanto existir o quarto de empregada, a luta continua”[3].
Zezé Motta, que já tinha ganhado projeção ao interpretar Xica da Silva, pensou: “bom, agora eu vou explodir”. Entretanto, o primeiro convite depois da novela que recebeu foi para interpretar uma empregada que servia doces para o Caso Especial: Festa de Aniversário, adaptação da obra de Clarice Lispector. Zezé recusou o papel, mesmo com a ligação do diretor Ziembinski pedindo para não “fechar esta porta”[4].
A primeira versão de Gabriela, de 1975, baseada no romance de Jorge Amado, teve como protagonista a atriz Sonia Braga. A justificativa do diretor Walter Avancini foi que não havia no mercado nenhuma atriz negra preparada para o papel. Aí, diante desta “impossibilidade”, segundo ele, foi escalada Sonia Braga. Curioso, já que, para o papel de empregada normalmente há várias atrizes negras preparadas, não é?
Há cinco anos, com a novela Segundo Sol, tivemos a escalação de um elenco majoritariamente branco (inclusive no núcleo principal, com Adriana Esteves, Giovanna Antonelli, Leticia Colin, Chay Suede, Vladimir Brichta, Emilio Dantas e Deborah Secco), em uma novela que se passa na Bahia, onde mais da metade da população é negra. Neste caso, o Ministério Público do Trabalho chegou a notificar a emissora, pouco antes da estreia, sobre a necessidade de representatividade de pessoas negras na trama.
Recém-lançada, a novela Amor Perfeito, traz um elenco com diversos atores e atrizes negros, cujos personagens movimentam a trama e são os mais variados, como o médico Orlando (Diogo Almeida, protagonista), fotógrafo Odilon (Bruno Quixotte), os freis Tomé (Toni Tornado) e Severo (Babu Santana), o promotor de justiça Silvio (Bukassa Kabengele) e a professora Celeste (Cyda Moreno). Como é bom ligar e assistir a uma novela com tamanha representatividade, com pessoas negras que não estão interpretando papel de escravizados ou algum outro estereotipo, como o de mommy ou de malandro. Setenta anos depois da primeira telenovela brasileira, percebemos mudanças. Que elas, finalmente, venham.
Notas de rodapé
[1] Milton faleceu no dia 30 de maio de 2022. Neste ano, no dia 09 de dezembro, completaria 90 anos de idade.
[2] INTERCINÉFILA, Nostalgia. Jornal Nacional (30-05-2022) – Morte do ator Milton Gonçalves. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tnl_wOKskUI>. Acesso em: 4 May 2023.
[3] GOMES, Karol. Thalma de Freitas fala sobre Zilda de ‘Laços de Família’ e diz que ’empregada doméstica é luxo’. Hypeness. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2021/02/thalma-de-freitas-fala-sobre-zilda-de-lacos-de-familia-e-diz-que-empregada-domestica-e-luxo/>. Acesso em: 4 May 2023.
[4] HYGINO, Cacau. Zezé Motta: um canto de resistência. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2018. p. 101.