No dia 21 de junho de 1830, nascia Luiz Gama. Ainda criança, foi vendido como escravizado pelo próprio pai. Aos 17, aprendeu a ler e a escrever e conseguiu comprovar que nasceu livre. Jornalista e escritor, o abolicionista era autodidata e conseguiu com suas brilhantes defesas libertar mais de quinhentos escravizados. Eu sempre faço questão de mencionar o dia nas redes sociais, já que, para mim, Gama foi o maior advogado que o Brasil teve. O maior advogado do Brasil foi um homem negro que, até pouco tempo, era pouco conhecido.
É inegável que precisamos ter representatividade nas instituições. Com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, começaram as especulações a respeito do nome a ser indicado pelo Presidente Lula para ocupar a cadeira vaga no Supremo Tribunal Federal. Pessoalmente, desejava que a indicação fosse feita com base nesta necessidade urgente que temos de reparar historicamente os quase quatrocentos anos do sistema escravista. No entanto, pensava que a indicação do presidente seria outra. No dia 01 de junho, Lula confirma o nome de Cristiano Zanin, advogado que atuou na defesa do presidente nos processos da Lava Jato.
Muitas pessoas começaram a criticar a escolha, já que Zanin foi o responsável pela defesa de Lula nos processos da Lava Jato. “Ah, tudo é mesmo um jogo político”. Não nos esqueçamos que, de acordo com o artigo 101 da Constituição da República, a pessoa indicada deve preencher apenas três requisitos: ter a idade mínima de 35 anos, ter uma reputação ilibada e notório saber jurídico. Não podemos inventar requisitos. Estes são os únicos que devem ser preenchidos.
Não nos esqueçamos que Collor indicou o próprio primo, Marco Aurélio de Mello. Quando a cadeira de Marco Aurélio ficou vaga em razão de sua aposentadoria, Bolsonaro indicou um homem “terrivelmente evangélico”. A cada indicação – e consequente nomeação, já que, até hoje, todas as pessoas indicadas foram nomeadas após a “sabatina” no Senado – precisamos ter em mente que, por décadas, aquela pessoa ocupará uma cadeira no STF, órgão máximo dentro da estrutura do judiciário, responsável pela guarda da Constituição, que julga importantes temas, como perfilamento racial, aborto e legalização das drogas. Conhecer, portanto, a trajetória profissional e os posicionamentos de quem irá julgar casos importantes para a nossa sociedade é essencial.
A minha crítica com relação à indicação de Zanin não é pelo fato de ter atuado na defesa de Lula. É uma crítica relacionada à consciência de gênero, raça e classe e com a História do Brasil. Para ser o mais didática possível, te convido a voltar um pouco comigo na história do STF. A primeira sessão do Supremo Tribunal Federal ocorreu em 28 de fevereiro de 1891. Naquele dia de um Brasil que dava os primeiros passos na República, quinze juízes, presididos por Visconde de Sabará se reuniram na sede do antigo Supremo Tribunal de Justiça[1] no centro do Rio de Janeiro.
Nem sempre, portanto, foi de 11 ministros a composição do STF. Apenas com a promulgação do decreto 19.656, em 1931, o número passou a ser de 11. Durante a ditadura militar, diversos atos institucionais foram instaurados e o AI-2, de 1965, aumentou o número de ministros para 16. Pouco tempo depois, o AI-6 de 1969, reestabeleceu a composição de 11 ministros, número que permanece até hoje.
Ao longo de mais de 130 anos, tivemos apenas três homens negros no STF: Pedro Lessa, em 1907; Hermenegildo Rodrigues de Barros, em 1919 e Joaquim Barbosa, em 2003. A primeira mulher ministra do STF foi Ellen Gracie, em 2000! Se fizermos mais um recorte, constataremos que nenhuma mulher negra foi nomeada.
É impossível fecharmos os olhos para tamanha disparidade. Nenhuma mulher negra ocupou uma cadeira no STF e apenas três homens negros até hoje lá chegaram. Desde o início, o STF foi composto, em sua quase totalidade, por homens brancos. Em um país em que 56% das pessoas são negras, como não questionar o fato de que órgãos institucionais são compostos exclusivamente por pessoas brancas?
Há quem ainda fale em “meritocracia”. Sabemos que não é bem assim. Se, em uma corrida, você sai na frente de outras pessoas que estão competindo com você, não é mérito. O que temos no Brasil é uma perpetuação de privilégios, aliados ao pacto narcísico da branquitude, sobre o qual escrevemos em texto anterior. Há um acúmulo de privilégios hereditariamente transmitidos[2].
Sobre os reflexos da escravidão, há quem ainda diga (como Bolsonaro, por exemplo, em entrevistas): “esquece isso, foi há muito tempo” ou “eu não escravizei ninguém”. Aquelas famílias brancas abastadas, donas de diversos escravizados, até hoje se beneficiam deste cruel sistema. O escravizado era um bem, um bem valioso, transmitido inclusive por herança. Quantos até hoje são os herdeiros e herdeiras deste sistema? Com relação aos escravizados, temos o outro lado da moeda: como estão as famílias cujos ascendentes foram escravizados? O que a assinatura da lei áurea concedeu aos então libertos? Não houve qualquer tipo de pagamento de indenização pelos anos de exploração. Obviamente, há consequências e não podemos ser levianos ao dizer que quem chegou lá é por mérito.
As cotas raciais foram uma das medidas implementadas em resposta aos efeitos dos séculos da barbárie que foi a escravidão. Só que as cotas não bastam. É preciso que realizemos medidas eficazes contra o racismo, é preciso que compreendamos que a democracia racial é um mito. De acordo com Livia Sant’anna, pessoas negras e indígenas nunca experimentaram de fato efetiva democracia por meio das instituições formais democráticas e é por isso que ela fala que a democracia brasileira é antinegra e está a serviço da branquitude[3].
Comecei o texto falando do nascimento de Gama. No mesmo dia 21 de junho, só que de 2023, 193 anos após o nascimento daquele notável advogado, doutor honoris causa pela USP, um novo ministro do STF é nomeado: Cristiano Zanin[4]. Mais um homem branco. Em breve, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber em outubro deste ano, teremos mais uma cadeira vaga, aguardando mais uma indicação de Lula. E já passou da hora de uma mulher negra ocupá-la.
Notas de rodapé
[1] O Supremo Tribunal de Justiça foi criado por Dom Pedro I, em 1828.
[2] VAZ, Livia Sant’anna. Cotas raciais. São Paulo: Jandaíra; selo Sueli Carneiro, 2022. p. 30.
[3] Ibidem, p. 25.
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/06/21/senado-aprova-zanin-para-vaga-no-stf.ghtml Acesso em 22 jun. 2023.