No despontar da Era Moderna, Nicolau Maquiavel (1469-1527), o controverso filósofo florentino, forjou os alicerces daquilo que viríamos a etiquetar de realismo político. Dispondo-se ao aconselhamento de príncipes, Maquiavel sustentava que manter o estado (mantenere lo stato) destacava-se como a preocupação fundamental da política institucional. Aqui, uma ligeira observação etimológica se faz necessária: por “manter o estado” entende-se não apenas a conservação do aparato de governo, senão também o próprio status ou condição de governante. Como se vê, na transição entre o pré-moderno e o moderno, a cabeça ainda era indissociável da coroa…
E como se mantém o estado? Ora, assumindo uma conduta marcada pela virtù. Esta é uma palavrinha de difícil tradução, que bem poderia ser representada como virtude, mas sem a conotação que lhe atribuíram os gregos antigos (aretê) ou os filósofos filiados à tradição escolástica. Maquiavel tinha em mente a excelência, sim, mas inteiramente livre dos entraves da moral convencional. Para um realista político, a virtude estava na habilidade de responder efetivamente aos inevitáveis câmbios da fortuna, na capacidade de agir de conformidade com as circunstâncias concretas. Para tanto, um temperamento dinâmico e inquieto viria a calhar, pois são justamente os indivíduos mais ativos, aqueles que trabalham incessantemente para a conquista de seus objetivos, os mais bem-sucedidos: a ociosidade é, para Maquiavel, um obstáculo para a virtù[i].
Séculos mais tarde, quando o modo de produção capitalista já se consolidava, Benjamin Franklin (1706-1790), exímio polímata e um dos líderes da Revolução Estadunidense (1775-1784), incorporou a aversão maquiaveliana à ociosidade, assimilando-a e generalizando-a em bases caracteristicamente burguesas. Seus conselhos não são dirigidos aos príncipes, e sim aos jovens comerciantes, ávidos de lucro; gente que deveria aprender, de uma vez por todas, que o mundo dos negócios é, por definição, aquele em que se nega o ócio, motivo pelo qual recomendava: “Lembra-te que tempo é dinheiro”[ii]. Não por acaso, Max Weber (1864-1920), sempre atento às incumbências da Verstehen, retomaria o mote frankliniano em sua obra clássica, uma vez que expressava, de maneira a mais contundente, o “espírito” do capitalismo[iii].
“Tempo é dinheiro.” Seguramente, a maioria de nós não tomou conhecimento dessa expressão nas páginas ou nas preleções de um erudito negociante. No meu caso, lembro-me de tê-la ouvido pela primeira vez quando ainda bem pequeno, assistindo ao Chapolin Colorado, de Roberto Gómez Bolaños (1929-2014). Ocorre que, em alguns poucos episódios, o herói mexicano concorria com um outro, representativo da cultura ianque, o Super Sam (em óbvia alusão ao Tio Sam); uma figura caricatural, interpretada por Ramón Valdés[iv] (1923-1988), cujo lema era, na verdade, um papaguear mecânico, mas decididamente cômico: Time is money! Ooooh, yeaaaah…
Este é apenas um entre os muitos exemplos de como a divisa de Franklin logrou difundir-se por todas as latitudes, passando a constituir o leitmotiv do “espírito” burguês. De fato, há um grão de verdade no chavão, pois é claro que o tempo de que se dispõe pode ser empregado para a obtenção de algum dinheiro. Contudo, estabelecer uma relação de identidade entre tempo e dinheiro é algo injustificável, e por uma razão das mais evidentes: ao menos em tese, são diversas as possibilidades de se recuperar algum dinheiro perdido, mas o inverso não se sustenta, uma vez que é impossível recuperar o tempo que se perdeu. O saudoso José Saramago (1922-2010) bem o sabia, como se verifica na belíssima crítica oposta ao pensamento irrefletido de um de seus personagens, Cipriano Algor[v]:
Distraíra-se com a demolição dos prédios e agora queria recuperar o tempo perdido, palavras estas insensatas entre as que mais o forem, expressão absurda com a qual supomos enganar a dura realidade de que nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade, que o tempo que críamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás, esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo, que déssemos pela falta dele.
“Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte”[vi] – declarou o Mestre Antonio Candido (1918-2017). Isto porque tempo é sucessão de eventos, e aquilo que sucede está aí, para bem ou para mal, terminantemente amarrado ao passado, mesmo quando ainda produza efeitos no presente. Sendo assim – e julgo que assim o é –, todo e qualquer anseio de recuperar o tempo perdido repousa na esfera da percepção[vii]; na subjetividade de quem, quando muito, ou bem se esforça para deixar de empenhar horas naquilo que se lhe pareça infecundo, ou se abstém de procrastinar em face daquilo que julga importante ou produtivo.
Ao cabo de anos explorando a força de trabalho alheia, um capitalista competente pode discorrer longamente sobre níveis de produtividade, o que, de resto, envolve gerir o tempo de vida dos seus subalternos com a máxima eficácia: reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção do maior número possível de mercadorias. Tomando de empréstimo as recomendações de Maquiavel, poderíamos dizer que, para um capitalista consequente, há uma única preocupação fundamental: mantenere lo stato – aqui, apenas no sentido de garantir a perpetuação de sua condição de capitalista, o que impõe, inclusive, assenhorar-se do Estado. Para essa finalidade, é imperativo agir de conformidade com as circunstâncias vigentes, garantindo o maior lucro possível, acumulando e concentrando capital para, com isso, derrubar a concorrência. E os trabalhadores, os verdadeiros produtores, que invariavelmente oscilam entre o pauperismo e a miséria? Que comam brioche!
Se o capitalismo é enviesado em favor do aumento dos índices de produtividade[viii], uma eventual melhora nas condições de vida dos trabalhadores é resultado meramente contingente: o foco é sempre o lucro, e não a satisfação das necessidades dos produtores e consumidores; a referência é sempre o mercado, e não a humanidade. Portanto, conserva inteira pertinência aquela humaníssima postulação de Marx (1818-1883)[ix]:
Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza, desenvolverá sua verdadeira natureza no seio da sociedade e somente ali, razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza não através do poder do indivíduo concreto, mas sim através do poder da sociedade.
À classe trabalhadora, compete, portanto, uma única tarefa: superare questo stato. Disso depende o futuro da humanidade, que já perdeu tempo demais fazendo a fortuna de uma minoria parasitária.
Notas de rodapé
[i] Confira-se, em especial, o capítulo 14 de O Príncipe: “Um príncipe sábio deve observar esses modos e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz; ao contrário, deve usar de indústria para fazer um cabedal e dele se valer nas adversidades, a fim de, quando mudar a fortuna, estar sempre pronto a resistir-lhe. In: MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 4ª. Ed. Trad.: Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2017, p. 74.
[ii] PANGLE, Lorraine Smith. The political philosophy of Benjamin Franklin. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007, p. 16.
[iii] “Ninguém porá em dúvida que é o ‘espírito do capitalismo’ que aqui nos fala de maneira característica, e dúvida também não há em afirmar que nem tudo o que se pode compreender por esse ‘espírito’ está contido aí.” In: WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad.: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 44.
[iv] Curiosamente, o mesmo Ramón Valdés ficaria conhecido por outro personagem, o Seu Madruga, da série Chaves (também de Bolaños); um tipo ocioso, que sobrevivia de “bicos” e pequenos trambiques, que fugia do trabalho como o diabo foge da cruz. Afinal, como afirmara em um certo episódio, “não existe trabalho ruim; ruim é ter que trabalhar.”
[v] SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 19-20.
[vi] https://bemblogado.com.br/site/antonio-candido-tempo-nao-e-dinheiro-tempo-e-o-tecido-de-nossa-vida/
[vii] Para uma didática introdução ao tema, cf.: HAMMOND, Claudia. Time warped: unlocking the mysteries of time percepction. New York: Harper Perennial, 2013.
[viii] Deixando de lado, é claro, os sanguessugas do rentismo.
[ix] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família: ou a crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. 1ª. Ed. Trad.: Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 150.