Teria sido uma noite como outra qualquer, não fosse por aquele jantar, ocorrido sabe-se lá quando, ou aonde exatamente, em algum restaurante, na Bahia. O que se pode afirmar, com toda a certeza, é que os comensais eram ambos escritores, mas suas personalidades eram tão divergentes, que conferiam ao encontro um ar de inusitado. Um deles era um renomado crítico literário; o outro tinha despontado, desde os anos 1930, como um dos nossos mais admirados romancistas.
Pelas suas qualidades analíticas, o crítico havia conquistado espaços de destaque nos mais disputados jornais do país, mas sua escrita grave e um tanto caturra, como se emulasse os mestres do século XIX, contribuiu bem para que muitos o julgassem um matusalém sisudo e de mal com a vida. O romancista, em contrapartida, se entregava por inteiro em seus livros: era, a um só tempo, a alegria e a jovialidade encarnadas, e com uma perceptível compaixão pelos mais vulneráveis.
Ainda que os temperamentos fossem algo incompatíveis, ambos tinham, nas letras, uma paixão em comum – e isso deveria bastar. Após o jantar, o romancista sugeriu que visitassem um terreiro, para que o crítico, que era paulista de nascença e curitibano por vocação, pudesse ter uma ideia da religiosidade baiana. Aceito o convite, seguiram para lá de carro, mas um obstáculo quase pôs fim à aventura: o terreiro repousava no topo de uma ladeira bastante íngreme, e o trajeto deveria ser percorrido a pé.
Ocorre que, quando criança, o crítico havia contraído poliomielite, de que sobrevieram sequelas que comprometeram sua capacidade de locomoção: de início, usava bengala e uma estrutura metálica para escorar as pernas; depois, passou a se apoiar em um par de muletas, até que não teve mais condições de suportar o próprio peso, e foi obrigado a se render à cadeira de rodas.
Diante de tão penosas limitações, o romancista, comovido, não se fez de rogado: “Monte aqui nas minhas costas, que eu lhe carrego até lá” – e assim foi feito.
Jorge Amado (1912-2001) acomodou Wilson Martins (1921-2010) como se fora uma mochila, segurando-lhe as pernas pela traseira dos joelhos e pedindo que o companheiro de travessia se apoiasse em seus ombros. A memória do evento nunca se perdeu…
Anos e anos mais tarde, mesmo após a morte do autor de Capitães de Areia (1937), Wilson Martins seguiu compartilhando sua formidável experiência com amigos mais próximos, e gostava de conclui-la com um quê humorístico, que o afastava decididamente daquela imagem trombuda, emprestada de seus textos autorais: “E foi então que a crítica literária andou sobre a literatura brasileira…”
Examinando os parcos apontamentos biográficos disponíveis a seu respeito, tem-se a delineação de um homem especial, daqueles que, ao que tudo parece indicar, seriam bem-sucedidos em qualquer coisa que pretendessem. A despeito de sempre ter se definido como crítico literário, o que não é pouco, uma ligeira avaliação de seu opus já bastaria para constatar, a bem da verdade, a gritante imprecisão. Wilson Martins foi, muito mais que um crítico literário, um crítico de cultura, no sentido pleno do termo.
Naquilo que concernia às suas preferências estilísticas, cultuava a sobriedade de José Veríssimo (1857-1916) e, mais contemporaneamente, tinha, entre os seus favoritos, Álvaro Lins (1912-1970), Sérgio Milliet (1898-1966) e Antonio Candido (1918-2017). Entrementes, se as influências teóricas e estilísticas são razoavelmente explícitas, o que o singularizou foi a ambição de seu projeto, revelador de uma obsessão quase ensandecida pelo Brasil.
No início dos anos 1960, Wilson Martins foi convidado a ministrar um curso de literatura brasileira no Kansas, nos Estados Unidos. Concluído o ano letivo, quando estava de malas prontas para retornar ao Brasil, recebeu um novo convite da Universidade de Wisconsin, onde permaneceria por mais dois anos. Mais adiante migrou para a Universidade de Nova York, onde assumiu o cargo de professor titular de literatura brasileira, cargo que exerceu pelos 26 anos seguintes – e que teria mantido por outros anos mais, não fosse a regra de aposentadoria compulsória. Tudo computado, foram trinta anos como lente de literatura brasileira nos Estados Unidos, metade dos quais foi dedicada ao seu projeto mais audacioso: História da Inteligência Brasileira[1] (1550-1960), em sete volumes[2]:
O projeto desse livro era fazer, de fato, uma história intelectual do Brasil, no sentido amplo da palavra – quer dizer, não só a história da literatura, mas também da literatura em relação a todas as outras atividades intelectuais. Por exemplo, as discussões políticas, as rivalidades religiosas, os problemas sociais – tudo isso que era discutido no momento mesmo em que eram publicados tais e tais livros de literatura. Então, ano por ano, tratei de estudar que relações a literatura tinha com essas diversas formas de trabalho intelectual e vice-versa. Tudo isso no meu livro começa num ano específico, 1550, quando foram fundadas as primeiras escolas jesuíticas no Brasil, pois a primeira atividade intelectual no Brasil foi nessas escolas no século XVI.
Pode-se divergir dos juízos analíticos, das interpretações e até mesmo do viés conservador inequivocamente esposado, aqui e ali, pelo autor; o que não se pode negar é o óbvio: trata-se de um repositório incomparável sobre a história das nossas letras; de uma fonte inesgotável de dados e informações sobre a nossa cultura. Isto posto, a obra é de consulta obrigatória a todos os interessados na formação social brasileira, seja qual for a sua área específica de pesquisa.
Só isso já satisfaria como prova de seu inaudito comprometimento com o Brasil, mas sucede que Wilson Martins, mesmo quando morava nos Estados Unidos, jamais deixou de colaborar com a crítica literária de sua terra natal. Principiando em O Dia (1942), escreveu até o apagar das luzes, em 2010, por quase sete décadas ininterruptas. Eis, portanto, outra evidência de sua obsessão: a exorbitância de colunas publicadas, entre 1954 e 2003, foi editada nos formidáveis quinze volumes de Pontos de Vista[3] (1954-1999) e nos dois tomos de O Ano Literário[4] (2000-2003). Não bastasse tudo isso, também há os dois volumes que enfocam, especificamente, a história da nossa crítica literária[5], além de outras dezenas de livros.
Peço que me corrijam, caso eu esteja equivocado, porém jamais tive notícia de um crítico que, por quase setenta anos, se dedicou a examinar tudo e mais um pouco sobre a produção bibliográfica de seu país; que se incumbiu, de modo tão consistente e incessante, da cultura de sua gente; e que deixou uma obra tão singular quanto vasta, em que estão dispostos, para a eternidade, todos os resultados alcançados. Em que lugar do mundo houve alguém que fez algo parecido? Em havendo, adoraria que me fosse apresentado; venho buscando, mas até o momento não encontrei ninguém que coabitasse a mesma enfermaria…
Notas de Rodapé
[1] A primeira edição saiu pela Cultrix (1976-1979), com reedição pela T. A. Queiroz (1992-1994). Atualmente, a obra se encontra-se sob os cuidados da Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Cf.: MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, 7 vols. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2010.
[2] Entrevista concedida a José Wille, em 1997, in: https://jws.com.br/2022/11/memoria-paranaense-entrevista-com-wilson-martins-critico-literario/
[3] MARTINS, Wilson. Pontos de vista (crítica literária), 15 vols. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1991-2004.
[4] MARTINS, Wilson. O ano literário, 2 vols. Paraná: Imprensa Oficial do Paraná; Rio de Janeiro: Topbooks, 2005-2007.
[5] MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil, 2 vols. 3ª. Ed. Paraná: Imprensa Oficial; Francisco Alves Editora, 2002.